19 de jan. de 2021

Liberalismo se resume a Humildade Intelectual

 “Pouco conhecimento faz com que as pessoas se sintam orgulhosas. Muito conhecimento, com que se sintam humildes.”

_Leonardo da Vinci

“O que sabemos é uma gota; o que ignoramos é um oceano.” 

_Isaac Newton

“Naquele tempo, respondendo Jesus, disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos.”

_Mateus 11:25

Se há uma virtude na qual grandes mestres da humanidade insistiram com notável ênfase, esta foi a humildade, em especial, a humildade intelectual. A noção de que o primeiro passo para a sabedoria é o reconhecimento da nossa ignorância ou de nossas limitações, começa, com mais ênfase, com Sócrates e seu famoso “só sei que nada sei“, mas ela se repetiu, entre crentes e céticos, entre mestres espirituais, filósofos e cientistas, ao longo dos séculos.

E houve uma filosofia política e social que tentou aplicar esta atitude de humildade aos seus objetos de análise: O liberalismo. Na verdade, o liberalismo pode ser resumido totalmente como a humildade intelectual aplicada à política e à sociedade. O liberalismo parte do pressuposto de que a realidade é sempre, mesmo em seus menores aspectos, complexa demais para ser compreendida totalmente pela mente humana. Somos e sempre seremos ignorantes de alguma forma; jamais chegaremos à verdade absoluta e podemos esperar, na melhor das hipóteses, apenas nos aproximarmos lentamente dela. É por não conhecermos a verdade perfeitamente que a liberdade se mostra necessária. Dois grandes sociólogos liberais explicaram:

“O liberal é humilde. Reconhece que o mundo e a vida são complicados. A única coisa de que tem certeza é que a incerteza requer liberdade, para que a verdade seja descoberta por um processo de concorrência e debate que não tem fim. O socialista, por sua vez, acha que a vida e o mundo são facilmente compreensíveis; sabe de tudo e quer impor a estreiteza de sua experiência – ou seja, sua ignorância e arrogância – aos seus concidadãos.”

_Raymond Aron

“O pensador cauteloso pode raciocinar … Se em … assunto pessoais, onde todas as condições do caso eram conhecidas por mim, com tanta frequência eu calculei mal, com que frequência eu não calculo mal em assuntos políticos, onde as condições são numerosas demais, difusas demais, complexas demais e obscuras demais para serem entendidas … Fico impressionado com a incompetência do meu intelecto em prescrever para a sociedade.”

_Herbert Spencer

A noção de que, na ausência de certezas, o estado não deve agir sobre o indivíduo, está na origem, por exemplo, de uma tradição muito antiga do direito: a In Dubio Pro Reo, ou a Presunção da Inocência, a noção de que o estado não deve punir um acusado a menos que exista um alto grau de certeza acerca da culpa.

Mas é no campo da filosofia do conhecimento que a humildade intelectual se mostra mais evidentemente importante. Não é coincidência que os teóricos do método científico que ajudaram a jogar um banho de água fria nas pretensões do conhecimento, também eram politicamente liberais. O primeiro deles foi David Hume quando levantou o Problema da Indução (leia mais sobre a filosofia de David Hume aqui); ele demonstrou que mesmo as mais fortes evidências empíricas não são provas definitivas e que elas jamais nos levarão à verdade absoluta, daí saiu toda a filosofia “cética” de Hume. Antes de David Hume, o método científico que vinha sendo defendido por pensadores como Francis Bacon e René Descartes, se tornava cada vez mais arrogante e presunçoso. A ciência vinha se transformando numa fábrica de novos dogmas, ao invés de um método para se aproximar da verdade.

O Problema da Indução levantado por Hume só encontraria uma solução parcial com outro teórico da ciência, também liberal: Karl Popper. Além de ter sido ele a identificar a humildade intelectual de Sócrates como uma precursora do liberalismo, também foi ele o grande formulador o método da falseabilidade, a ideia de que uma boa teoria científica precisa mostrar os meios pelos quais ela pode ser refutada; resumindo, uma boa teoria precisa dar dicas de como ser refutada e enquanto ninguém consegue refutá-la, mesmo com essas dicas, a teoria é aceita temporariamente como verdade, mas nunca é claro, como verdade definitiva. Um exemplo: É praticamente impossível provar definitivamente a afirmação de que todos os cisnes são brancos, mas bastaria encontrar um único cisne negro para provar que a afirmação está errada. Graças às contribuições de filósofos como Hume, Kant e Popper, a ciência hoje é vista como um eterno devir e nunca como um dogma acabado.

Baseado neste mesmo raciocínio, Popper acreditava que a sociedade também deveria estar aberta ao progresso contínuo e que nenhuma sociedade deveria ser vista como acabada, baseada em verdades absolutas e imutáveis; foi com base nisso que Popper criticou Hegel e Marx, pensadores que postularam ideias sobre o Fim da História. A sociedade livre e aberta para mudanças lentas e graduais nada mais é do que a introdução do método científico na política já que este é o único método que nos permite aprender com nossos erros e corrigi-los.

Também esse é o argumento que Popper usa para criticar as utopias. Se só podemos aprender através da tentativa e erro, então não é razoável acreditar que uma reconstrução completa da sociedade conduzirá imediatamente a algo que possa funcionar.  Na tentativa de se criar um modelo totalmente novo de sociedade, encontraríamos uma série de pequenos erros que só poderiam ser resolvidos pelo método gradual, mas como a utopia é a negação do método gradual então, a cada erro, a sociedade teria que ser totalmente reconstruída novamente do zero, assim, nunca chegaríamos a lugar nenhum. O radicalismo repele a razão e a substitui por uma esperança vã em milagres políticos. Por isso, para Popper, “toda tentativa de construir um paraíso na Terra, acaba criando um inferno“.

Mas não basta que a sociedade esteja aberta ao progresso, é necessário reconhecer que somente os indivíduos livres são motores desse progresso. Foi com base na noção de que jamais conheceremos a verdade absoluta que John Stuart Mill defendeu a liberdade de expressão. Se ninguém conhece a verdade absoluta, então ninguém tem o direito de impor sua verdade simplesmente porque essa verdade é parcial, imperfeita e provavelmente está errada de muitas maneiras; somente a partir do conflito e do debate com outras ideias é que essas verdades parciais e imperfeitas podem se aperfeiçoar.

“(…) a opinião que se tenta suprimir por meio da autoridade talvez seja verdadeira. Os que desejam suprimi-la negam, sem dúvida, a sua verdade, mas eles não são infalíveis. Não têm autoridade para decidir a questão por toda a humanidade, nem para excluir os outros das instâncias do julgamento. Negar ouvido a uma opinião porque se esteja certo de que é falsa, é presumir que a própria certeza seja o mesmo que certeza absoluta. Impor silêncio a uma discussão é sempre arrogar-se infalibilidade.”

_John Stuart Mill em Sobre a Liberdade

Este raciocínio iria influenciar um dos maiores filósofos céticos do século XX, Bertrand Russel. Ele declarou:

“A essência da visão liberal está não nas opiniões que são defendidas, mas em como são defendidas, ao invés de defendidas de forma dogmática, são defendidas experimentalmente, e com a consciência de que novas evidências podem a qualquer momento, levar ao seu abandono.”

_Bertrand Russell

“O temperamento mental científico é cauteloso, hesitante e fragmentado, ele não imagina que conhece toda a verdade ou que até mesmo o seu melhor conhecimento é totalmente verdadeiro. Ele sabe que toda doutrina precisa de emenda mais cedo ou mais tarde, e que a emenda necessária requer liberdade de investigação e liberdade de discussão.”

_Bertrand Russell em Religion and Science, Oxford University Press, 1935 – pg. 245 – 246

Pela mesma razão também Friedrich Hayek, inspirado em Adam Ferguson, defendeu a superioridade da Ordem Espontânea sobre a Ordem Planejada de forma centralizada. O conhecimento sobre como a sociedade deve funcionar, está disperso na própria sociedade e é sempre grande demais para ser reunido e utilizado por um planejador central ou um grupo pequeno de burocratas. Hayek chamou a presunção de que o conhecimento sobre como organizar a sociedade poderia ser conhecido por uma autoridade central de “Arrogância Fatal”. Hayek também percebeu que os preços numa economia de mercado são sinais que carregam informações e que somente quando estes preços são formados livremente é que eles podem representar e acomodar devidamente as demandas da sociedade, informação essa que também jamais poderá ser toda reunida e utilizada por um planejador central. Ele explicou:

“O caráter peculiar do problema de uma ordem econômica racional se caracteriza justamente pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias sob as quais temos de agir nunca existe de forma concentrada e integrada, mas apenas como pedaços dispersos de conhecimento incompleto e frequentemente contraditório, distribuídos por diversos indivíduos independentes. O problema econômico da sociedade, portanto, não é meramente um problema de como alocar ‘determinados’ recursos — se por ‘determinados’ entendermos algo que esteja disponível a uma única mente que possa deliberadamente resolver o problema com base nessas informações.”

_Friedrich Hayek em O Uso do Conhecimento na Sociedade.

Embora Hayek fosse um economista considerado “heterodoxo”, seu argumento também foi percebido por economistas ortodoxos. Paul Samuelson explica em seu livro-texto, um dos mais usados em cursos de economia em toda a história:

“Uma economia de mercado é um mecanismo elaborado para coordenar pessoas, atividades e negócios por meio de um sistema de preços e mercados. É um dispositivo de comunicação para reunir o conhecimento e as ações de bilhões de indivíduos diferentes. Sem inteligência central ou computação, resolve problemas de produção e distribuição envolvendo bilhões de variáveis e relações desconhecidas, problemas que estão muito além do alcance do supercomputador mais rápido de hoje. Ninguém projetou o mercado, mas ele funciona notavelmente bem. Em uma economia de mercado, nenhum indivíduo ou organização é responsável pela produção, consumo, distribuição e preços.”

_Paul Samuelson e William D. Nordhaus em Economics, pg. 31

Na verdade, essa percepção ultrapassa até mesmo os economistas ou pensadores sociais assumidamente liberais.

“Um verdadeiro mercado concorrencial é um instrumento eficaz para alcançar importantes objetivos de justiça: moderar os excessos de lucros das empresas singulares; responder às exigências dos consumidores; realizar uma melhor utilização e economia dos recursos; premiar os esforços empresariais e a habilidade de inovação; fazer circular a informação, em modo que seja verdadeiramente possível confrontar e adquirir os produtos em um contexto de saudável concorrência.”

_Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica – 347

“O governo não pode, a todo instante, regular as condições dos diferentes mercados econômicos, fixar os preços de suas mercadorias e serviços, ou manter a produção dentro dos limites das necessidades de consumo, etc. Todos esses problemas práticos surgem de uma infinidade de detalhes, de milhares de circunstâncias particulares que somente aqueles muito próximos dos problemas conhecem.”

_Emile Durkheim em The Division of Labor in Society, New York, The Free Press, 1933 – pg. 360

A liberdade é claro, não tem o mesmo valor para todos igualmente e embora num estado de direito, todos devam ter igual direito à liberdade, isso não significa que todos farão bom uso da liberdade ou saberão o que fazer com ela. No entanto, os gênios, os inovadores, os visionários e os empreendedores que fazem o mundo girar, precisam de um ambiente de liberdade. Foi o que explicou John Stuart Mill:

“É verdade que os indivíduos de gênio são, por natureza, uma pequena minoria; mas, para tê-los, faz-se mister preservar o solo em que crescem. O gênio só pode respirar livremente numa atmosfera de liberdade. Os gênios caraterizam-se, ex-vi termini, por uma maior individualidade do que os outros – são menos capazes, consequentemente, de se adaptar, sem uma prejudicial compressão, a qualquer dos padrões pouco numerosos que a sociedade erige para poupar aos seus membros a pena de formarem o próprio caráter.”

_John Stuart Mill, Sobre a Liberdade, p. 116

No fundo portanto, a liberdade, em todas as suas formas e aspectos, é apenas a solução para o problema da falta de conhecimento que é intrínseco à condição humana.


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